Sobre a Cashrut da codorna e de seus
ovos; e se podemos nos basear em costumes de outras localidades para poder
consumi-los.
Índice:
1. Um esclarecimento sobre a regra 'As
aves são consumidas de acordo à tradição'.
2. A opinião dos Acharonim
(autoridades rabínicas pós-Shulchan Aruch) sobre a transferência de um Min'hag
(costume haláchico) de um lugar para outro.
3. Os fundamentos da tradição que
permite o consumo da codorna.
4. Uma análise do método do Chazon
Ish.
5. Conclusão.
Por ocasião do grande número de
consultas que me foram encaminhadas sobre este tópico da Cashrut, venho, uma
vez mais, expressar minha opinião, por escrito, com relação ao consumo da ave
de codorna e seus ovos.
1. Um esclarecimento sobre a regra:
'Aves consumidas por tradição'.
A Mishná traz uma passagem conhecida a
este respeito (Chulin 3:6): "Os sinais [de Cashrut] das animais domésticos
e silvestres foram pormenorizados pela Torá, ao passo que os sinais que
caracterizam as aves não o foram.
Contudo, nossos Sábios disseram: todas
as aves de rapina – são impuras. Porém, as que possuem esporas, papo e moela
que se descasca à mão – são puras. Rabi Eliezer bar Tsadok diz: todas as aves
que dividem os dedos dos pés [dois deles voltados para a frente e dois voltados
para trás] são impuras". O Talmud
apresenta uma Beraita (Chulin 63b), segundo a qual rabi Itschac afirma que as
aves puras só podem consumidas de acordo à tradição. Se um caçador afirmar que
determinada ave é pura, porque assim lhe ensinou seu mestre, ela será
considerada pura. Segundo rabi Iochanan, o caçador deve saber reconhecer cada
ave e também saber chamá-la pelo nome. Rabi Zeira formula a seguinte pergunta:
De que mestre estamos falando, de um rabino ou de um caçador, especialista em
aves? O Talmud tenta resolver esta questão trazendo a opinião de rabi Iochanan,
para quem, este especialista deve conhecer as aves e seus nomes. Daqui o Talmud
deduz, que de fato, trata-se de um caçador, mestre em nomes de aves puras.
Rashi esclarece que a tradição deste caçador deve provir de um mestre em caça
ou de um mestre religioso. Rashi acrescenta que esta regra deve ser aplicada
Lechumrá, ou seja, da regra dos sinais e da tradição: "Como não sabemos ao
certo quais são as aves puras, se nos apresentarem algum tipo de ave aquática,
por exemplo, afirmando que não é de rapina, não a comeremos, a menos que exista
uma tradição que permita o seu consumo, sobre a qual podemos nos apoiar"
(ibid. 62b). Segundo Rabeinu Asher ben Iechiel, o Rosh (Chulin, capítulo 3:59),
devemos ser rigorosos com relação a esta regra de Rashi e não ingerir uma ave
que não tem sido consumida pelos judeus de acordo à tradição dos nossos
antepassados, mesmo que ela apresente os sinais característicos das aves
puras.
Para o mesmo Rosh (ibid. 60), a
tradição se aplica de formas diferentes, de acordo com a localidade: se
determinado indivíduo viajou de um país onde não há tradição sobre determinada
ave, para outro país onde ela é considerada pura [e portanto consumida], pode
basear-se no costume local e ingerir sua carne e ovos, mesmo que mais tarde
retorne ao país onde morava. Neste caso, não há perigo de estar transgredindo
uma Chumrá (restrição), pois [de fato] esta ave não deixa se der consumida em
seu país por ser considerada impura, mas por não haver uma tradição a respeito.
O fato de não a consumirmos em determinado país deve-se mais à falta de
tradição do que propriamente da negação de sua pureza porque lhe faltam os
sinais característicos às aves casher. Portanto, ela pode continuar a ser
consumida nos países onde há uma tradição a respeito enquanto não forem
averiguados e comprovados os sinais que a desqualifiquem como ave casher.
Deduz-se, portanto, que isto ainda não confere à ave em questão o status de
casher em todos os lugares onde habitam os judeus.
De acordo a Maimônides (Leis sobre
Alimentos Proibidos, 1:15), vale a regra segundo a qual um caçador de aves
possa reconhecê-la pelo nome e ter recebido de seu mestre que esta ave é casher
por tradição. Contudo, podemos nos deparar com uma situação onde uma ave
parecida exista em outra localidade onde habitam judeus. Neste caso, não
podemos concluir automaticamente que a ave em questão seja casher. Não
obstante, se um exame zoológico desta ave determinar que trata-se da mesma
espécie – podemos nos basear na tradição existente em outra localidade e
considerá-la casher.
O Rosh escreve também (responsa
20:20): "... Saibam que não como de acordo com a tradição deles, mas de
acordo com o nosso costume, segundo o que receberam nossos sábios Ashkenazim de
seus ancestrais, desde a época da destruição do Templo, assim como receberam
nossos rabinos da França, mais do que a tradição deste país. O que está dito:
'As aves devem ser ingeridas de acordo com a tradição', ou seja, se uma pessoa
não conhece determinada ave e chega a um lugar onde ela é consumida por
tradição, deve confiar na palavra dos habitantes locais e sentar-se a comê-la
com eles. Contudo, se os sábios de Israel (Chachamim) consideram uma ave
impura, não deve comê-la com base em tradição de outros". Aprendemos aqui,
que se uma comunidade considera uma ave impura, não devemos consumi-la com base
no costume alheio, mesmo quando estivermos em visita a uma comunidade que o
permita.
O Rashba (Rabeinu Shelomó BenAderet)
segue o mesmo raciocínio, embora com menos rigorosidade, considerando a
tradição uma possibilidade adicional ao método dos sinais. [Veja o método do
Baal Hamaor, Chulin 83 (página 21 do Rif), para quem uma ave que atenda aos
sinais dados pela Torá não há necessidade de agregar o consumo por tradição, e
assim decretou o Shiltê Guiborim de acordo com a maioria dos Possekim
(autoridades haláchicas)].
Com respeito à migração de um Min'hag
(costume haláchico) de um lugar para outro, o Rashba escreve (Torat Habait
Hakatsar, portal 3, página 62b [para identificar os comentários Rashba, veja as
conclusões do Chidá em nome dos Guedolim, no volume onde Torat Habait Hakatsar
prova que o Beit Iossef também concluiu como o Rashba]):
"Se o costume é consumir os
produtos de uma ave em alguns lugares e não consumi-los em outros – parece-me
que podemos confiar nos lugares onde a consomem, porque seguramente se baseiam
em alguma tradição de nossos sábios, do contrário não seria permitido o consumo
deste tipo de ave. Apesar desta tradição não ter sido aceita em outros lugares
– não se pede a alguém que não haja testemunhado algo novo que dê seu voto de
confiança a este costume, mas a alguém que o tenha presenciado [similarmente ao
caso apresentado em Nidá 7b, da Tossefta Nidá 1:5]. Eu diria àqueles que ainda
proíbem o consumo desta ave que ela 'está permitida', mas que eles não a
ingerem porque se assemelha a alguma ave impura muito parecida com o ave pura,
no lugar onde vivem". Ou seja, de uma comunidade tem por tradição
permitir, a mesma tradição permite esta ave às demais comunidades, com exceção
daquelas cuja tradição é ser rigorosa neste caso, justamente porque em suas
comunidades existe uma ave muito parecida e considerada impura, portanto as
autoridades haláchicas locais proibiram à população judaica a ingestão de
quaisquer aves do gênero. Mesmo assim, nosso mestre Rashba admite esta Chumrá
(restrição) somente como uma possibilidade e daqui podemos concluir, como regra
geral, que se pudermos provar que a ave permitida em determinada localidade é
idêntica àquela existente numa localidade onde ainda não exista uma tradição a
respeito – esta ave também está permitida, mesmo no local onde se suspeite que
a [mesma] ave local não seja pura.
Assim decreta rabeinu Iaacov Baal
Haturim, com base na opinião de seu eminente pai (Iorê Deá 82:5): "Não só
isso, mas todas as comunidades judaicas podem basear-se na tradição daquela que
permite o consumo desta ave, conquanto não seja possível determinar que
trata-se de uma ave impura", ou seja, se existe uma tradição em algum
lugar, esta tradição libera o consumo da ave em questão para todas as outras
comunidades, enquanto tragam prova em contrário [que existe algum lugar onde
afirmem com toda a certeza que esta ave é impura, como no caso da cegonha, com
relação à qual existem tradições contraditórias (veja a resposta do Rosh, que
proíbe o consumo desta ave, de acordo com o costume Ashkenaz)].
O Beit Iossef cita o método de rabeinu
Ierucham, que foi mais além na permissão do consumo desta ave, estendendo-a às
pessoas provenientes de um lugar onde é permitido alimentar-se de sua carne e
ovos, permitindo que o façam também no lugar onde isto é proibido, pois o fato de
não a comerem em determinado lugar não provém de uma tradição estabelecida, mas
do fato de não saberem determinar se aquela ave é pura. Proibição por
desconhecimento não tem validade haláchica. (Só é preciso estabelecer se esta
pessoa pode comer a ave em questão na presença dos habitantes locais que não
tem por costume comê-la, como em todos os casos de alguém que vem de um lugar
onde o costume é um, para um lugar onde o costume é outro. Veja mais sobre isto
no Tratado Pessachim, início do capítulo 4 e o mesmo tema no Tratado Taanit
10b, Shulchan Aruch (SH), Orach Chaim (OCh) 464 e as 'Regras dos Min'haguim'
(costumes haláchicos) no inicio do comentário Shulchan Gavoa do rabino Iossef
Molcho (OCh, primeira alínea1). Após escrever estas linhas, descobri que o Pri
Megadim escreveu também, que o consumo desta ave só é permitido em privado,
(Siftê Daat, 82:11)
2. A opinião dos Acharonim
(autoridades rabínicas pós-Shulchan Aruch) sobre a transferência de um Min'hag
(costume haláchico) de um lugar para outro.
Maran, rabino Iossef Caro no tratado
Iorê Deá (ID), parágrafo 82, resume os sinais das aves puras, como segue: a
primeira regra é que não sejam aves de rapina (em caso de dúvida, verificamos
se não divide os dedos igualmente, por exemplo dois para frente e dois para
trás, ao apoiar-se ou pousar sobre um fio e se não agarra sua caça do ar –
sinais claros de ave de rapina). Se estiver claro que a ave não é de rapina,
ainda é necessário constatar os seguintes sinais: a. dedo adicional (espora).
b. papo e c. moela descascável à mão. Apesar disto, Maran decreta Lechumrá (a
rigor), que mesmo tendo todos os sinais característicos de uma ave pura, o
animal não deve ser ingerido se não houver uma tradição clara a respeito, que
remonte aos nossos ancestrais. Na continuação deste item, Maran inclui as
palavras do Tur e as Kulót (permissões) de rabeinu Ieruchám. Contudo, no
tocante à migração de um costume de um lugar onde esta ave é permitida – para
outro, a tradição dita que deve-se permitir a ave em questão: "Se nas
demais localidades onde não se consome esta ave, por não haver uma tradição a
respeito, pode-se consumi-la, com base numa localidade onde a façam, algumas
autoridades o permitirão e outras não; é preciso fazer notar a opinião que proíbe"
(82:5).
O Shach (alínea 11) explica demorada e
minuciosamente, que esta regra incorre no fato de, na opinião de Maran, haver
uma disputa entre o Rosh (que permite) e o Rashba (que proíbe), ainda que para
o próprio Shach não haja disputa alguma aqui, pois o Rosh permite o consumo da
ave em lugares onde não a conheciam, enquanto o Rashba a proíbe em lugares onde
há uma tradição clara que a proíba. O Shach escreve também, que o Maharshal
tende a permitir esta ave e apoia a opinião que permite a uma pessoa que migra
de um lugar onde a ave é permitida para outro onde não a consomem, que
"leve" a permissão de ingeri-la consigo [das palavras do Darkê Moshe,
no seu comentário sobre o Bêt Iossêf (ID 82, alínea 2), parece-me que ele
também agrega motivos para proibir o uso da permissão de levar a tradição de um
lugar a outro. Surpreende-me que, a análise do Rashba pelo Shach, já tenha sido
elucidada pelo Lechem Mishne (Mishnê Torá, Alimentos Proibidos 1:15) e o Shach
não o menciona, adicionando ainda que dele se conclui que é preciso ser
rigoroso somente nos lugares onde é tradição proibir a ave ainda que saibam que
há quem a consuma e, como escrevemos acima, "decretaram" que a regra
é não consumi-la e que o fazem somente porque acham que ela é proibida – mas isto
não é tradição, senão falta de conhecimento].
O Baal Halevushim (82:4) é um pouco
mais rigoroso que Maran. Assim como ele, não permite a migração de uma tradição
de um lugar para outro (a exemplo do Rashba – pois talvez tenham proibido uma
ave por parecer-se com uma ave local considerada impura), liberando o consumo
desta ave apenas para quem provém de uma localidade onde seu consumo é
permitido para outra, onde o consumo esteja proibido, em regime de Kulá, pois a
regra é não implementar um decreto a
outro.
O Gaon, Baal Pri Megadim (Siftê Daat,
ibid. 11) resume o tema afirmando que trata-se aqui de quatro categorias
distintas, eis a primeira delas:
Local onde não existe tradição (de
consumo desta ave) – a pessoa que chegou a esta comunidade proveniente de outra
onde o consumo é permitido, não só pode consumir esta ave, como todas as demais
localidades podem aplicar esta tradição com base na comunidade onde ela é
permitida. Esta é também a opinião do Rosh e também uma Kulá no comentário do
Gaon de Vilna, alínea 9 de sua coletânea.
Contudo, o Gaon e chefe da corte rabínica da cidade de Argel,
Rav Iehudá Aiash, em seu comentário sobre o Shulchan Aruch, Beit Lechem Iehudá,
é estrito com relação às regras referentes a quem viaja de um lugar para outro
e tende a permitir o consumo de uma ave somente em lugares onde não há uma
proibição explícita e mesmo assim, aplicável somente para indivíduos, "Mas
quanto aos lugares em si, eles não tem regras claras sobre proibir ou permitir
este animal – atuando de acordo com o costume de outros" [Palavras do Gaon
Chidá, em Machzik Berachá 82:9], mas na verdade, sua opinião é individual, e
mesmo que o Gaon, autor do Caf HaChaim, tenha expressado sua opinião, o fez de
modo resumido (ibid. 32 e sua fonte é sem dúvida o Pri Toar do rabino Chaim ben
Atar (ibid. 4) e também o Zovchê Tsedek, 26). O rabino escreve ainda:
"Tudo isto diz respeito a aves cuja tradição proibia... mas as aves
existentes numa cidade onde não há prescrição alguma no sentido de proibir ou
permitir seu consumo, como até este momento não se sabia por tradição que ela é
permitida, e agora descobriram que ela é ingerida pela população judaica em
outra cidade por tradição – a regra simples é que podemos nos apoiar no
conhecimento e na tradição de uma cidade para estender a permissão às
outras".
Além disso, encontramos palavras de
apoio no comentário do Gaon e Av Beit Din, rabino Calfon Moshe Hacohen,
z"l, junto aos seus pares da corte rabínica de Jerba (responsa Shoel
veNishal, parte 2, Iorê Deá 164), que escreveu sobre a permissão de consumir
uma ave que havia na sua época (parece tratar-se do Peru), cuja análise revelou
sinais característicos das aves puras, cujo consumo fazia parte do costume de
uma das autoridades rabínicas, mas não de outras e perguntaram-lhe da cidade
que não tinha esta tradição se era permitido consumi-la. O rabino contestou que
é permitido consumi-la por Safek Sfeka (dúvida sobre dúvida): a primeira dúvida
remonta à permissão do consumo pelos Rishonim e pela ave não ser consumida por
uma questão de Chumra (rigor); a segunda dúvida dissipa-se com o testemunho da
autoridade rabínica que a consome apoiado na tradição. Por este motivo, o
argumento de Safek Sfeka permite o consumo da ave a todos. O mesmo se aplica ao
consumo da codorna devido aos seus sinais de ave pura e por existir uma
tradição em consumi-la em determinadas comunidades e por importantes
autoridades rabínicas.
Chamamos a atenção para a responsa do
rabino Moshe Feinstein, Orach Chaim 4:62, com relação às cidades da América
compostas de comunidades do Velho Mundo, ele próprio decretou para as
comunidades americanas a Kula (leniência) da Nefichá (soprar os pulmões), com
base no fato da maioria das antigas comunidades terem por costume serem
lenientes neste assunto, o que não acontece aqui no Brasil, onde os judeus
provém de comunidades com costumes diferentes. Se nos apoiarmos na regra 'Kama
Kama Batel' (ou seja, quem precede no assentamento de uma comunidade judaica,
fixa a tradição para as levas posteriores), veremos que os primeiros judeus do
Brasil eram Sefaradim de origem portuguesa que viviam no Recife e que possuíam
a tradição de comer carne e ovos de codorna (como transparece da tradição do
autor da obra Zivchê Cohen – de Livorno – comunidade Sefaradi de origem
portuguesa).
Se alguém argumentar que este costume
caiu em desuso porque a comunidade se extinguiu, diremos que logo após chegaram
os judeus de Belém, quer trouxeram consigo a tradição do Marrocos, cujo costume
é simples e claro com relação à codorna (eu mesmo, durante a infância, comia
ovos de codorna por orientação de meu pai, que viva longos e bons anos). Se
alguém quiser citar os costumes da cidade de São Paulo, parece-me que seus
primeiros habitantes judeus também eram de origem Sefaradi. Com respeito à
regra 'Kama Batel', veja a opinião do rabino Ovadia Iossef, em sua responsa
Iabia Omer, parte 5, Orach Chaim 21:3; Iore Deá 5:3 na metade da alinea 1 e
Orach Chaim, parte 1, 34:14. Veja também a opinião do Nodá Bihudá (Nodá Bihudá
Kamá, Iorê Deá 54), segundo o qual, não se denomina como costume de uma cidade,
a não ser o que foi estabelecido no início pelos sábios desta cidade – e isto
não se aplica ao nosso caso. Veja também os costumes do Gaon, rabino Iossef
Malcho, no início do livro Shulchan Gavoa (inicio do Orach Chaim, parte 1, leis
130-138).
A regra é que, de acordo com
autoridades proeminentes entre os Acharonim, Ashkenazim e Sefaradim, com
relação a cidades novas que não tem tradição comunitária, a respeito dos países
norte e sul-americanos, onde parte do público descende dos judeus que tem por
tradição consumir esta ave e os demais simplesmente desconhecem esta
possibilidade e há quem diga em nossa cidade que não se come codorna porque nas
suas cidades de origem, antes da guerra, porque ele não era encontrado nestes
países por isto não conheciam uma
tradição clara a respeito – mas neste caso eles podem basear-se naqueles que
possuem esta tradição e, como eles, consumir carne e ovos de codorna.
Desnecessário afirmar que não se pode definir esta ave como impura e quem o
come ingere Taref. Quem o afirma surpreende sobremaneira, como esclareceremos a
seguir.
3. O princípio da tradição que permite
o consumo da codorna.
A codorna é uma ave de pequeno porte
(cerca de 20 cm de comprimento). Seu nome científico é Coturnix coturnix, Quail
em Inglês, Caile em Francês. Ave migratória da espécie Galiforme e da família
dos Faisanídeos, é a única espécie migratória de sua família, migrando todos os
anos da Europa para a África em bandos enormes. Ocasionalmente, constrói ninhos
nos desertos do Neguev e do Sinai.
A origem da permissão para o seu
consumo figura duas vezes na Torá (Êxodo 17 e Números 11), onde o texto bíblico
diz ser esta a carne que Deus prometeu aos filhos de Israel durante sua
permanência no deserto, quando reclamaram de estarem comendo somente o Maná e
desejaram comer carne, sendo punidos por isto. Portanto, seu consumo foi
permitido desde o início e esta ave jamais foi considerada impura. A Guemará
esclarece (Iomá 75b), "Disse rabi Chanin bar Raba: existem quatro tipos de
codorna, o Sikli, o Kibli, o Faisão e a Codorna propriamente dita. O de melhor
paladar é o Sikli e o pior parecer ser a codorna". Dos episódios que
figuram no Talmud podemos concluir que a codorna era uma iguaria especialmente
apreciada pelos Amoraim.
A codorna figura na relação das aves
consumidas por tradição no final da obra do rabino Avraham Hacohen 'Zivchê
Cohen' (Livorno, 1840). No final deste livro imprimiram algumas tabelas (em
parte das edições estão pintadas com tinta guache) onde figuram os desenhos de
trinta aves. O desenho número 8 parece-se com a codorna que conhecemos e nome
italiano junto desenho é Quaglia. Este livro dá suporte à tradição dos judeus
italianos referente ao consumo de quarenta tipos de aves.
O rabino, Gaon Iaacov Sofer, no livro
Caf Háchaim (Iorê Deá 82:24), declara: "Na cidade de Bagdad existem alguns
tipos de patos pequenos, bem menores que as pombas de menor tamanho. É um tipo
de codorna e seu nome em árabe é Guita. A tradição na cidade de Bagdad, do modo
como o recebemos de nossos ancestrais, é consumir esta ave por considerá-la uma
ave pura. A fonte deste costume é citada no livro Zivchê Tsédek, do Chacham
Abdala Somech (rabino de Bagdad e mestre do Ben Ish Chai) no seu comentário
sobre Iorê Deá, letra 19.
A identificação da codorna que
conhecemos com a codorna bíblica é confirmada pelo rabino Dr. Israel Meir
Levinguer, acima de quaisquer dúvidas, em diversos artigos: primeiramente, no
artigo que escreveu para a revista Sinai (1967), em Hamayian (11b, páginas
33-35), voltando a dissertar sobre este assunto na coleção de artigos
haláchicos face à modernidade Techumin, tomo 9, página 403 (veja também suas
palavras sobre a Cashrut do faisão no
tomo 1), além de um artigo especial como anexo do comentário Daat Hamishná
sobre o livro Êxodo (paginas 334-341), com uma lista de nomes de aves
acompanhada de 39 desenhos de aves permitidas de acordo com a tradição das
comunidades de Israel, conforme as identifica o Dr. Levinguer. A codorna é a
ave de número 19. O professor Israel Félix é da mesma opinião.
Concomitantemente, o rabino Amram
Ederi escreve na Enciclopédia sobre a Cashrut dos alimentos (Jerusalém 1988,
paginas 106-107), que de ponto de vista biológico, a codorna apresenta os
sinais de Cashrut apontados por nossos Sábios. Similarmente, ele cita a obra do
rabino Levinguer, 'Alimentos Casher no Reino Animal' (página 54), com estas
palavras: "Existe uma tradição oral com relação ao abate e consumo de
codorna em Jerusalém, e os sábios Sefaradim em Jerusalém, que seja construída
brevemente, em nossos dias, atestam que abateram esta ave quando foram trazidas
em gaiolas, de El Arish, antes da Guerra da Independência de Israel".
Recentemente, foi pedido ao Rishon
Letsión, rabino Bakshi Doron, que se pronunciasse a respeito em seu livro
Binian Av (4:40). Neste livro, o rabino apresenta testemunhos de rabinos que
analisaram o assunto dos anos sessenta em diante: rabino Levinguer, rabino
Munssa, o rabino e Shochet David Nesher, o rabino e Shochet Mordechai Meiuchas,
o rabino e Shochet Chaim Chazan e também o Gaon, rabino Shelomo Goren e o Gaon
Iossef Kapach, de abençoada memória, assim como outros, que atestam, sem sombra
de dúvidas, que as codornas domesticadas em Israel (no Kibutz Iavne e no Moshav
Beer Tuvia) são aves cujas tradição de abate e consumo é claramente permitida.
O rabino traz também o testemunho do Shochet mor de Jerusalém, rabino Tsión
Chukaima, shalita, que testemunhou diante de um Beit Din, com estas mesmas
palavras: "Eu, abaixo assinado, afirmo e dou fé, que recebi do meu pai, de
abençoada memória, a tradição que estas aves são casher e de acordo com seu
legado as abati. Vi também, que assim procedeu o rabino e Shochet Chaim Chazan,
um dos mais proeminentes Shochatim dentre nossos irmãos Ashkenazim, que viva
longos e bons dias".
Com relação à questão atual que traça
diferenças entre a codorna européia e a japonesa, sendo esta última a espécie
domesticada e criada em Israel e no mundo (por ser de fácil criação e porque
bota ovos maiores e em maior quantidade), afirma o rabino Levinguer em seu
livro: "A codorna doméstica se parece com a codorna silvestre, sendo
difícil distinguir entre elas. Até o momento, os zoólogos não decidiram se elas
formam uma só espécie ou duas espécies distintas. De qualquer forma, a
semelhança entre elas é a infinitamente grande". O autor nos fornece esta
dado com base na pesquisa que fez a pedido do rabino Unterman, quando
finalmente também foi decidido pelos rabinos Nesher e Goren permitir o consumo
destas aves, dada sua semelhança. Resumindo, o rabino Bakshi Doron escreve:
"Não existem suspeitas com relação a isto, mesmo que hajam diferenças de
cunho zoológico entre os dois tipos de codorna, pois estas diferenças não são
visíveis externamente – portanto, podemos permitir seu consumo por tradição...
e nossa tradição determina quais aves são casher unicamente com base na
distinção dos seus sinais externos pelo caçador. Além do parecer do caçador e
sinais externos de Cashrut do animal, não há necessidade de averiguações adicionais
ou do conhecimento de outras diferenças... contanto que esta ave se pareça com
as consumidas com base na tradição – por isto, não há porque buscar elementos
além do testemunho dos Shochatim, que torna esta ave permitida a todo o povo
judeu... e por isto é preciso liberar o consumo da carne de codorna e seus ovos
para todo Israel e que comam os humildes e se saciem".
4. Uma análise do método do Chazon
Ish.
Após a conclusão deste tratado,
pediram-me que leve em conta a opinião do Gaon, o Chazon Ish com relação a este
assunto. É do conhecimento de todos que na sua opinião, não devemos comer uma
ave sobre a qual não tenhamos uma tradição clara de consumo, mesmo que ela
apresente os sinais básicos de Cashrut (Chazon Ish, Iorê Deá, 11-4,5). É
preferível se mais estrito com relação às aves que não sejam consumidas por
tradição, pois é mais grave comer uma ave a não ser por tradição, do que a
carne de um mamífero.
Assim escreve o Chazon Ish: "...
E também escreveu [o Chochmat Adam], 'Que é preciso que saibam, que só devemos
consumir um animal conforme ensinaram nossos Sábios' e que não é possível que
não tenham conhecido esta espécie de ave, mas que decidiram não consumi-la
propositadamente". Subentende-se de suas palavras, que em todos os lugares
onde esta ave não era consumida, o fator que o ditava não era a falta de
conhecimento, mas a decisão de não fazê-lo, pela similaridade da ave local com
uma ave impura e, portanto, segue como correlato, que a tradição de uma
comunidade não serve para permitir o consumo desta ave a outras.
A fonte deste argumento parece ser o
rabino Chochmat Adam. Contudo, uma análise mais profunda do texto escrito por
este rabino revela que podemos permitir o consumo de uma ave em determinada
comunidade, com base na tradição sólida de outra (Chochmat Adam, regra 36,
parágrafo 9): "Se nos defrontamos com uma ave sobre a qual nada
conhecemos, não se pode aplicar a ela o costume de um país e se alguém puder
atestar de fonte idônea que a ave em questão é pura – devemos confiar neste
testemunho, pois é possível basear-se no testemunho de uma única pessoa com
relação às proibições [da Torá], mas em nossos dias, não podemos confiar em
ninguém, por isso não devemos consumir uma ave a menos que saibamos claramente
que ela é pura... parece-me também, que ainda que saibamos que esta ave é
consumida em outra comunidade, é preciso certificar-se que isto ocorre com o
aval de autoridades rabínicas incontestáveis, o que não ocorre com um lugar
onde ergue-se uma nova comunidade judaica e não existem autoridades rabínicas
disponíveis para consulta. Neste caso, é possível que um testemunho seja
passível de erro".
No entanto, as duas condições do
Chochmat Adam se cumpriram com relação à tradição da codorna desconhecida da
Europa Oriental e o costume dos judeus Sefaradim de consumi-la tem como base,
sem sombra de dúvidas, autoridades rabínicas proeminentes, como mencionamos no
capítulo anterior.
O Chazon Ish (Iorê Deá 82, fim da
alínea 10) traz como argumento o livro Pri Chadash, que lida com uma aparente
contradição no texto do Shulchan Aruch (alíneas 4 e 5): "Na alínea 4, o
Shulchan Aruch se refere ao caso de não termos uma tradição clara que permita o
consumo desta ave. Neste caso, mesmo na opinião do Rashba, seria permitido o consumo
da ave às pessoas do local onde não há tradição. Contudo, o texto na alínea
seguinte se aplica ao caso onde não sabemos se a ave não é consumida devido à
carência de uma tradição ou por um decreto proibitivo".
Se tivermos dúvidas com relação ao
costume de não comer esta ave, devemos agir com rigor (Lechumrá) e não nos
basear em que o faz, mas se sabemos que ela não é consumida simplesmente porque
não se tem o hábito de fazê-lo – podemos nos basear no costume de quem o faz. O
Chazon Ish conclui com base nas palavras do Pri Chadash, segundo o qual, em
todos os lugares onde não se come esta ave, devemos assumir que estas
comunidades assumiram estas regras sobre si próprias. Contudo, o Pri Chadash
diferencia entre os lugares que não comem esta ave porque não a conhecem e
aqueles que não a consomem pois não sabem o motivo da restrição desta hábito,
por isso, nos lugares onde a proibição deriva de uma falta de tradição, não se
pode afirmar que isto se relaciona com o a regra da similaridade entre as aves.
Veja no livro Pri Toar, que apesar da sua divergência com o Pri Chadash,
concernente à controvérsia entre o Rashba e o Rosh, ele conclui e escreve
(Ibid. 82, Dibur Hamatchil 'Ela'): "Parece [com relação a ser rigoroso ou
apoiar-se na tradição] a proibição feita por determinadas comunidades de
consumir carne de codorna deve-se ao fato de seus de seus ancestrais não lhes
terem revelado que o seu consumo é permitido, mas também não lhes disseram que
é proibido; simplesmente, ainda não haviam conhecido esta ave e não tinham
tradição alguma a respeito, mas encontraram uma cidade que tem esta tradição –
transparece que todas as opiniões concordam ser possível apoiar-se no costume
de uma comunidade que já possui esta tradição..." e daqui conclui-se que
no caso de uma tradição ter como fonte o não conhecimento, dada sua
inexistência nesta região e se for este o motivo de não consumi-la – na opinião
geral podemos nos apoiar na tradição da comunidade que a possui.
Vale acrescentar, que a opinião do
Chazon Ish não foi formulada de forma decisiva (Bari), senão
"porventura" (Shema) pois não
se pode dizer que não o comem porque não o conhecem e por conseguinte, nos
lugares onde não a comem, deve-se assumir que o fazem por causa da similaridade
das aves, a título de restrição. É preciso dizer que, na opinião da maior parte
dos Acharonim é preciso facilitar [o consumo da codorna] nos lugares onde
reconhecidamente não o proibiram, somente não tinham este hábito. Além disso,
não existe uma tradição de não se comer carne de codorna, apenas ela não é
consumida em algumas localidades e nunca ouvimos dizer que esta ave seja impura
e não podemos formular decretos em nossos dias com base naquelas comunidades
que não consomem a carne e os ovos da codorna pelo simples fato dela não ser
encontrada nestes lugares e pelo desconhecimento da permissão de consumi-la. É
preciso acrescentar que isto não é senão uma dúvida oriunda da falta de
conhecimento e certamente, por causa do Safek Sefeka (uma dúvida dentro de
outra) do rabino Shaul e devemos perguntar, decerto, e acrescentar a regra da
responsa do Divrei Chaim (Iorê Deá, parte 2, final do parágrafo 45) em louvor a
Érets Israel, pois todos os habitantes de Israel consomem a carne e os ovos da
codorna e certamente, a uma tradição de Érets Israel vale para o mundo
todo.
5. Conclusão.
É portanto um fato certo e conhecido
que a codorna é uma ave pura e que apresenta os sinais de pureza [da Torá] e
que a tradição do seu consumo é evidente e originária de comunidades antigas e
importantes, assim como: os Sefaradim da Itália, os judeus iraquianos, os
Sefaradim de Jerusalém, os judeus iemenitas, os judeus da África do Norte e
parte dos judeus Ashkenazim, para quem esta tradição é correta e acima de
quaisquer dúvidas. A carne e os ovos da codorna são permitidos para o
consumo, laMehadrin min haMehadrin, a
ponto dos hotéis mais requintados da cidade de Jerusalém, que seja reconstruída
em nossos dias, servirem carne e ovos de codorna sob supervisão rabínica. Fica
patente que as pessoas que não tem o costume de comê-los por falta de tradição,
podem apoiar-se na tradição das comunidades supracitadas e consumir carne e
ovos de codorna sem receio algum.
Podemos acrescentar a isto o aval do
rabino Shemuel Havlin, shelita (Rosh Beit Din do BDK de São Paulo), que
concorda com esta opinião e de comum acordo, estamos orientando todos os que
nos indagam a respeito, no intuito de passarem a consumir ovos de codorna e que
também pratiquemos o seu abate aqui na cidade de São Paulo, Brasil.
Com respeito a anulação de votos e
costumes (Hatarát Nedarim): quem pertence a uma família que não costumava comer
ovos de codorna na Europa, antes da Segunda Guerra Mundial e que deseja ir além
de sua obrigação (Baal Nefesh) deve procurar uma autoridade rabínica para fazer
uma Hatarát Nedarim (para que possa começar a consumir codorna) apesar de,
primordialmente, não há necessidade de anulação de votos para as pessoas que
não comiam codorna por falta de tradição, pois isto não lhes impõe nenhum tipo
de voto ou costume. Aqueles dentre os judeus Sefaradim que não comem codorna
porque lhes disseram que esta a ave é impura – podem voltar ao costume de seus
avós e voltar a consumir esta ave sem a necessidade de anular votos, pois esta
Chumrá (restrição) está fundamentada num equívoco e não se aplicam a ela as
regras dos juramentos de Mitsvá (Nidrê Mitsvá).
Que estas palavras encontrem bom eco
nos ouvidos de quem as seguirem e que
abençoados sejam.
Rabino Daniel Touitou
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