ONAAT DEVARIM INTENCIONAL
Há casos em que uma pessoa
intencionalmente insulta a outra. Às vezes é
devido ao ciúme. Ou pode
ser um jeito de intimidar. Em outros casos, a pessoa
está tentando construir a
sua própria autoimagem colocando os outros para
baixo e se sentindo bem à
custa deles/as.
Há uma história terrível,
citada em várias obras, em que uma comunidade
na Europa contratou um
novo rabino. Como era habitual, no dia em que ele
chegou, fizeram um grande
kabalat panim (cerimônia de boas-vindas).
O Rav foi escoltado
até a sinagoga por toda a comunidade, e a sinagoga estava decorada com uma
grande faixa que dizia: “Baruch ata bevoecha” (Bendito seja você quando entrar [Devarim 28:
6]). O
Rabino foi convidado a fazer a sua primeira derashá (prédica) como Rav
da cidade. Entre as pessoas presentes estava um brilhante jovem
recém-casado com a filha de um dos congregantes.
O Rav deu um profundo
shiur em um tópico talmúdico e o jovem, parentemente tentando impressionar
o seu sogro, interrompia o discurso com uma pergunta atrás da outra. Cada resposta do
Rav trazia uma enxurrada de novas perguntas, até que o jovem finalmente fez uma
pergunta que deixou o Rav desconcertado.
Quando percebeu que havia vencido
o debate, o jovem levantou-se e
disse: “Efsher iz es shoin
der tzeit tzu zuggen 'Baruch ata b'tzeteha' - Talvez seja hora de dizer: 'Bendito
você será quando sair’ (Ibid). Adeus!”
Grande observação!
‘Genial’! Mas no judaísmo chamamos ditos
espirituosos como esse de
“Onaat Devarim”. Sem entrar em detalhes, basta
dizer que esse jovem não
teve uma vida feliz depois desse insulto.
A Onaat Devarim
intencional também pode ser uma tentativa de exercer
controle ou intimidar
outra pessoa. Por exemplo: todos sabem que o calcanhar
de Aquiles de um baal
teshuvá é o seu passado. E há aqueles que focam neste
ponto a fim de
controlá-lo.
O Rabino Samson Raphael
Hirsch (Alemanha, 1808-1888) define a proibição de
“lo tonu ish et amito”
da seguinte forma: “Abusar ou tirar vantagem de um
ponto fraco em outra
pessoa”. Ele sugere que a raiz gramatical de “tonu” está
conectada à da palavra
“kano”, que significa adquirir, se apropriar de algo. Uma
pessoa dominadora que quer
controlar outra pessoa irá humilhá-la
repetidamente até que esta
se sinta intimidada e subconscientemente comece a
se prostrar diante de seu
opressor para evitar mais constrangimento.
Rav Yaacov Weinberg Z”TL
(EUA 1923-1999), Rosh Yeshivá da Yeshivat Ner
Israel (em Baltimore,
EUA), sugeriu que a razão pela qual o trecho de Onaat Devarim foi colocado –
aparentemente de forma dissonante – na Porção Semanal que trata sobre o yovel (o ano
do jubileu) é porque ela compartilha a mesma mensagem fundamental que o yovel.
Hashem ordenou que as terras que adquirimos retornem aos seus
proprietários originais no yovel como um lembrete de que, na verdade, tudo pertence a
Ele.
“Se realmente acreditamos
que Hashem está no controle de tudo”, explicou Rav Weinberg,
“não ‘da boca para fora’, então não há espaço para o ciúme ou a intimidação que
levam as pessoas a se engajarem em Onaat Devarim. D’us provê tudo o
que precisamos para funcionar. Sendo assim, não há razão para colocar os
outros para baixo ou para dominá-los”.
ONAAT DEVARIM NÃO
PROPOSITAL
A segunda forma de Onaat
Devarim é aquela que muitas vezes não é
notada por ninguém,
incluindo o perpetrador – como ocorre quando as pessoas
tendem a relaxar, quando
não precisam manter a formalidade.
É um tipo de Onaat Devarim
que é praticado na privacidade de nossos próprios lares. Não é um
cenário incomum. Há pessoas que quando estão em público fazem de tudo para
serem extremamente gentis e falar com o maior respeito a fim de evitar
ferir os sentimentos de alguém. Porém, quando cruzam a porta de sua casa, algo
acontece. A fala, o modo de conversar com os membros da família, as palavras
subitamente se tornam mais duras e mais exigentes.
E se as palavras não
mudam, muitas vezes o tom muda. Os cavalheiros mais
educados e as mulheres
mais gentis e refinadas transformam-se, mesmo sem
querer, em maridos,
esposas e pais impacientes, tiranos e insensíveis. Em
particular, entre quatro
paredes, muitas vezes falamos com nossos cônjuges e
filhos de uma maneira que
nunca sonharíamos de falar em público.
O irônico é que o Talmud
ensina que este ponto é especialmente importante para os homens: “Leolam yehei
adam zahir beonaat ishto” – o marido deve ser extrema cuidadoso em relação a
magoar sua esposa, “shemitoch shedimata metzuya, onaata kerova” – pois uma vez
que suas lágrimas vêm prontamente, ela tende a se sentir magoada e ofendida,
muito mais do que os homens.
O Maharal (Ibid.) explica
que as mulheres naturalmente esperam proteção
de seus maridos. Quando a
proteção é substituída por ataques ofensivos, isto é
particularmente doloroso para
elas.
É importante que os
maridos se lembrem que assinaram um contrato
nupcial (ketubá)
manifestando que tratarão suas esposas com respeito. Entre as cláusulas da ketubá está:
“Vou honrá-la, apoiá-la, mantê-la e trabalhar para
sustentá-la à maneira dos
homens judeus”.
Uma das poucas fotos do Chafets Chaim |
Alguém uma vez me contou
que foi ed (testemunha haláchica) em uma ketubá em que o Rav
Avraham Pam presidia como messader kidushin (a pessoa que dirige a
cerimônia do casamento). Enquanto preparava a ketubá, Rav Pam leu-a para o
noivo, explicando-a linha por linha. Quando chegou a este item, ele disse:
“E o principal é: ‘Eu vou honrar você’”.
Outra área em que Onaat
Devarim é frequentemente ignorada é aquela em
que pode ser mais dolorosa
e desastrosa. O Sefer HaChinuch alude a isso ao
afirmar que devemos evitar
ofender as crianças com palavras.
Eu diria que isso se
aplica principalmente às crianças que mais amamos – a saber: as nossas.
Devemos perceber que os
nossos filhos nos procuram por aprovação, não
importa a idade e em que
estágio da vida estão. Um comentário mordaz ou
resposta impertinente dos
pais é extremamente doloroso e pode causar danos
permanentes. Não estou
sugerindo que não devemos repreender nossos filhos
quando necessário, mas
devemos ser muito cuidadosos de que os estamos
construindo com palavras,
não quebrando-os.
Certa vez o Rabino Moshe
Feinstein (Rússia e EUA, 1895-1986) estava voltando
para casa e seus netos
pequenos estavam brincando com outras crianças. Seus
netos vieram correndo, ele
se abaixou e deu um beijo neles. Mas as outras
crianças vieram junto. O
que fez o Rabino? Deu um beijo também nas outras
crianças porque não queria
magoar seus sentimentos. Este é um pequeno
exemplo da famosa
sensibilidade de Rav Moshe de nunca entristecer outra
pessoa, mesmo uma criança.
Rav Pam sugeriu outra
explicação para a admoestação de “veyareta
me'Elokecha” no versículo
de “lo tonu”: Ela vem nos lembrar que, mesmo
quando na privacidade de
nossas próprias casas, sem pessoas de fora ouvindo
nossa maneira de falar,
devemos falar com respeito, porque Hashem está lá. Ele
está escutando e ouvindo a
maneira como falamos com nosso cônjuge, com
nossas crianças. Não pense
que quando não está em público, ninguém está
ouvindo. “Eu ouço!”
Quando o Gaon de Vilna
(Lituânia, 1720-1797) partiu para Eretz Israel, ele
escreveu uma carta para a
sua esposa na qual a instruiu – entre outras coisas –
a ter cuidado com sua
fala, porque há “baalei gadfin” (anjos) que registram cada palavra proferida em
nossas casas. Depois de nossos 120 anos, estes anjos reproduzirão as nossas
falas. Como nos sentiremos quando ouvirmos essas palavras e esses tons?
Imagine como seríamos
cuidadosos se soubéssemos que existe um sistema
de alta tecnologia em
nossas casas que registra cada palavra que dizemos aos
membros da nossa família.
Quão cuidadosos seríamos com as palavras que
pronunciamos!
O quanto precisamos ser
cuidadosos no modo como falamos com as nossas
crianças. As crianças às
vezes fazem erros, fazem coisas tolas e bagunçam
mesmo. Quando precisarem
ser admoestadas, tome cuidado para não ser
abusivo, não rotulá-las ou
fazê-las sentirem-se inúteis.
Algum tempo atrás ouvi um
programa de rádio que consistia em entrevistas curtas com
pessoas comuns que tiveram um incidente interessante em suas vidas para
relatar. Uma das pessoas entrevistadas disse que, quando estava crescendo, ele era
o maior trapalhão que havia. Porém havia uma coisa que ele conseguia fazer
melhor do que qualquer outro: ele era um bom comedor.
Um dia ele viu um anúncio
no jornal de um concurso de comer kneidales (bolinhos feitos com farinha de
matsá). Ele se inscreveu e venceu todos os concorrentes comendo dez bolas de
matsá – que ele descreveu como sendo tão grandes quanto bolas de beisebol – em
2 minutos e 56 segundos.
“No recebimento do prêmio”,
ele contou orgulhosamente ao entrevistador,
“o prefeito Rudolph
Giuliani me presenteou com o prêmio de 'Melhor comedor de kneidales da cidade de
Nova York'“.
“Meu único
arrependimento”, concluiu tristemente, “é que meu pai não
estava mais vivo para me
ver receber o prêmio. Ele sempre me disse que eu era um perdedor. Mas não sou
um perdedor. Ganhei o concurso e consegui apertar a mão de Giuliani”.
Você pode imaginar? Essa
pessoa passou a vida com o rótulo de ‘perdedor’
dado por seu pai soando em
seus ouvidos, e não conseguiu afastar essa imagem até ganhar a dúbia
distinção de ser nomeado o melhor comedor de kneidales de Nova York.
Tenhamos cuidado em
relação a como falamos com os nossos filhos.
Nossas palavras significam
muito para eles!
Leia a abordagem de um
líder do Povo de Israel sobre como repreender
uma criança:
Quando o Rav Eliahu Lopian
(Polônia e Israel, 1876-1970) estava na casa dos 90 anos, um rapaz o
acompanhava ida e volta todas as manhãs até a sinagoga. Rav Lopian era o
Mashguiach (orientador espiritual) da Yeshivá Knesset Hizkiahu, em Kfar
Hassidim. Este menino – que agora é um especialista em Chinuch (educação) em
Eretz Israel – descreveu como ele era uma criança hiperativa e irrequieta e às
vezes ficava enfadado enquanto escoltava o Rabino nonagenário. Para liberar um
pouco do seu excesso de energia, ele
chutava pedras na rua ou puxava folhas de arbustos e as mastigava.
Um dia, quando se
aproximavam da casa do Rav Lopian, este se virou
para o menino e
perguntou-lhe se gostava de doces. O menino respondeu
que sim. “Você poderia
entrar e fazer uma berachá em um doce?” o
Mashguiach perguntou.
A criança aceitou
entusiasticamente a oferta. Subiram ao apartamento e o Mashguiach
entregou-lhe um cubo de açúcar e esperou que ele recitasse um shehakol.
Quando terminou o cubo de açúcar, o Mashguiach começou a fazer
um monte de elogios ao garoto. “Você percebe que é um menino
muito importante?” ele perguntou. “Você ajuda um idoso a ir e voltar da
sinagoga todos os dias...”.
Rav Eliahu continuou falando
sobre como esse menino era hashuv (importante). Quando
sentiu que havia convencido o menino, ele disse:
“Você quer ser ainda mais
hashuv?”
O especialista em Chinuch
disse que se lembrava de ter pensado que o Mashguiach já havia
feito um ótimo trabalho convencendo-o de seu valor – e que ele não
precisava necessariamente sentir-se ainda mais hashuv, mas mesmo assim
escutou.
“Às vezes, quando os
meninos andam na rua”, disse o Mashguiach, “eles ficam um pouco
entediados e tiram folhas de arbustos e as colocam na boca. É preferível não
fazer isso, porque a pessoa que é dona dos arbustos pode não ficar
satisfeita”.
“Mas aprendemos na
Yeshivá”, retrucou o menino, “que os ramos de
uma árvore que se estendem
para o domínio público (reshut harabim) não
pertencem ao
proprietário”.
Outra pessoa poderia ficar
tentada a responder: “Ouça, garoto. Eu
terminei o Talmud quatro
vezes antes de seu avô nascer. Não me
desafie”. Mas Rav Eliahu
Lopian disse: “Você está levantando um bom
ponto. Contudo eu não
disse que é considerado roubo. Eu disse que isso
poderia incomodar o dono,
e não vale a pena incomodar ninguém –
mesmo que você tenha o
direito de fazê-lo”.
“Mais importante,”
continuou o Mashguiach, “as folhas tendem a ter
pequenos insetos nelas, e
a cada vez que uma pessoa engole um inseto
ela transgride cinco
proibições da Torá. Um menino que quer ser
extremamente hashuv não
colocaria folhas em sua boca”.
Rav Eliahu então agradeceu
o menino profusamente novamente por o
acompanhar, levando-o para
casa, e o garoto voltou para a Yeshivá.
É espantoso pensar até
onde foi esse Gadol B’Israel para evitar ferir os
sentimentos de um menino
que merecia uma repreensão. Em vez de gritar-lhe
uma ordem assim que o viu
arrancar uma folha e colocá-la na boca, ofereceu-lhe doces, convenceu-o de que
era hashuv e depois lhe disse como ser ainda mais hashuv.
Este mesmo especialista em
Chinuch certa vez foi instruído pelo Rav Haim
Kanievski shelita (Israel,
contemporâneo) a ensinar às pessoas que todas as mitsvót ben adam le'havero (mitsvót
vigentes entre uma pessoa e outra) se aplicam também quando se trata dos
próprios filhos.
Isso pode parecer óbvio,
mas realmente tratamos nossos filhos da mesma
forma que tratamos nossos
conhecidos do trabalho, sinagoga, kolel? Ou
tendemos a relaxar quando
lidamos com nossos familiares e deixamos a nossa
repreensão e crítica
fluírem livremente?
segue em Palavras constroem mundos 3 - parte final
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