Certa vez o Rabino Avraham Pam Z”TL (EUA, 1913-2001) comentou sobre todo
o incrível trabalho que está sendo feito pela Hafetz Haim Heritage Foundation
(https://powerofspeech.org/) sobre os terríveis efeitos do Lashon Hará (fala difamatória), oferecendo dezenas e dezenas de diferentes programas e campanhas de conscientização internacionais para nos ensinar como não falar Lashon Hará – e com extremo sucesso.
Todavia uma fala positiva engloba mais do que apenas evitar o Lashon Hará. Há outro aspecto da fala que pode ser tão prejudicial e – em certos casos – até pior do que o Lashon Hará, e que carregam consigo os terríveis sofrimentos que as palavras podem infligir. Em hebraico isto é chamado de Onaat Devarim – traduzido livremente como ‘palavras dolorosas’.
Se buscarmos em nossas memórias de infância, provavelmente nos lembraremos de pelo menos um caso em que alguém nos insultou e nossas mães (ou algum outro adulto) nos responderam com o poema (americano):
Paus e pedras,
Podem quebrar meus ossos
Mas as palavras nunca podem me machucar.
Odeio refutar um mito que muitas pessoas carregam consigo há tanto tempo, mas essa rima contém a mesma veracidade que os contos de fada. A Torá ensina que as palavras têm poder e infligem danos muito grandes. São mais dolorosas, mais destrutivas e mais difíceis de reparar do que paus e pedras em ossos quebrados.
Palavras podem machucar e palavras podem curar. Muitas pessoas dizem:
“Palavras são ‘apenas palavras’. Que diferença já podem fazer?” Isto não é
verdade. As palavras são enormemente poderosas. Podem machucar e podem
curar. Podem encorajar e podem destruir. E precisamente por serem tão
poderosas é que há uma proibição na Torá contra o ato de falar palavras
ofensivas – umas das 365 proibições da Torá, assim como as proibições de
roubar ou comer alimentos não-casher.
Em Parashat Behar, a Torá declara: “Velo tonu ish et amito veyareta
me'Elokeha, ki ani Hashem Elokehem - Cada um de vocês não deve afligir nem
atormentar seu companheiro, e tema o seu D’us; pois eu sou Hashem, seu D’us” (Vaikrá 25:17).
O livro Sefer HaChinuch (Mitsvá 338) define essa proibição da seguinte forma:
“Há uma proibição de dizer coisas que irritem e /ou façam sofrer outra pessoa –
ou seja: não se deve dizer palavras que magoem, causem dor e deixem a pessoa desamparada, sem reação”.
Poderíamos pensar que para ser considerado um transgressor de Onaat
Devarim a pessoa teria de dizer algo excessivamente ofensivo ou totalmente
degradante. Para a nossa surpresa, entretanto, o Talmud (Baba Metsia 58b) lista vários exemplos de Onaat Devarim que poderíamos ter considerado como formas perfeitamente normais de expressão.
Vejamos:
• Não se deve dizer a um baal teshuvá: “Lembre-se de seu passado”.
Um baal teshuvá (ou uma baalat teshuvá) é uma pessoa que não seguia no
caminho da Torá e que agora está seguindo. Não é permitido lembrar-lhe de seu
passado. Um exemplo: o seu colega de assento na sinagoga é um baal teshuvá
que pronuncia cada sílaba da reza com sentimento e se balança com tanta
concentração e inspiração, que você começa a ficar irritado com todo o seu
entusiasmo (que talvez nós próprios não sintamos). Então você diz a ele: “Ouça! Por que você não vai mais devagar com toda essa empolgação? Há apenas três meses você estava comendo salada de camarão...”. Tais palavras ‘acertam’ num ponto muito sensível e delicado da pessoa e, portanto, constituem Onaat Devarim.
Tanto a comida quanto as palavras tem que ser casher. |
• Piadas de mau gosto podem ser Onaat Devarim.
O Talmud diz: “Se uma pessoa vê puxadores de burros que chegaram à
cidade e estão procurando feno para alimentar seus animais, ela não deve
encaminhá-los a alguém que não tenha alimento para eles. Quando batem na
porta e pedem feno, descobrem que a pessoa, por exemplo, é vendedora de
bebidas – e ela ficará muito envergonhada por não ter como ajudar”. O
brincalhão provavelmente deu boas risadas à custa do outro – porém transgrediu a proibição da Torá de Onaat Devarim.
Caso você pense que isso é um exagero, considere a seguinte resolução
rabínica que aparece no livro Shut Hatam Sofer (Hoshen Mishpat 176):
Havia um shohet (pessoa que faz o abate de animais segundo as leis da cashrut) em certa aldeia que teve uma filha. Ele quis pregar uma peça num conhecido seu de outra cidade. Este conhecido era um mohel (pessoa que faz brit milá nos bebês) que sempre aceitava viajar grandes distâncias pelo privilégio de cumprir a mitsvá de brit milá.
Ele o chamou à sua aldeia para que fizesse o brit milá de seu filho na 4ª feira seguinte. O mohel ficou feliz com a oportunidade de fazer esta grande mitsvá e viajou quatro horas até a aldeia. Ele entrou na sinagoga na manhã de 4ª feira e perguntou: “Onde está o bebê?”
Todos riram. “Menino? Ele teve uma filha!”.
Todos na aldeia deram boas risadas à custa do mohel, que voltou para casa humilhado. Grande piada! Mas custosa.
O Hatam Sofer (Rabino Moshe Sofer, Hungria, 1762-1839)
determinou que este shohet fosse suspenso de seu trabalho até que pedisse e
recebesse perdão do mohel. Ele tornou-se um shohet passul (desqualificado) por ter violado a proibição de Onaat Devarim.
Claramente, Onaat Devarim não é motivo de riso. Há aqui uma severidade
que não encontramos em muitas outras proibições e que traz a fúria do Todo-
Poderoso sobre a pessoa como poucas outras proibições da Torá o trazem.
Em Parashat Mishpatim a Torá nos exorta: “Kol almaná veyatom lo te'anun
- não aflijam viúvas e órfãos” (Shemot 22:21). Poder-se-ia pensar que essa proibição se aplica apenas a viúvas e órfãos, mas Rashi (Rabino Shlomo ben Ytschak (França, 1040 - 1104)) ensina o contrário. Ele explica que a Torá escolheu viúvas e órfãos apenas como exemplos de membros da sociedade que, por não terem ninguém para defendê-los, atribuem qualquer insulto que recebam à sua vulnerabilidade.
Na verdade, no entanto, a proibição se aplica igualmente a qualquer um que sofrer como resultado de nossas ações.
A Torá continua nos alertando sobre as terríveis consequências que afligirão aqueles que causarem dor a outra pessoa: “Pois se ela clamar a Mim, Eu certamente ouvirei seu clamor. O Meu furor se inflamará e Eu os castigarei pela espada. As vossas mulheres ficarão viúvas e os vossos filhos órfãos”(Ibid vs. 22-23).
Enquanto a proibição de infligir dor não se limita apenas à variedade
verbal, é evidente que aqueles que usam palavras para ferir os outros correm o
risco de incorrer na ira de Hashem e em sofrer consequências desagradáveis.
O Talmud (Baba Metsia 59a) ensina que há casos em que os Portões Celestiais
que recebem as nossas orações podem estar fechados, porém sha'arei ona'ah lo
ninalu - os Portões da Onaat Devarim nunca se fecham.
A angústia que a pessoa sente quando é agredida por um ataque verbal é tão aguda e dolorosa que, quando ela clama, seu grito atravessa esses portões e D’us a atende.
Meu bom amigo Yaacov Luben me mostrou algo fascinante. Há um livro intitulado Amudei Or escrito por um brilhante sábio, o Rabino Yehiel Heller (Lituânia 1814-1862).
Era um dos maiores gênios de sua época. Curiosamente, cada responsa em seu livro é assinada com “He’aluv Yehiel Heller”. He’aluv significa “O humilhado”. Por que Rav Yehiel Heller assinava suas responsas com essa estranha denominação?
Seu avô materno tinha uma loja de bebidas. Quando viajava a negócios,
sua filha Rivka cuidava da loja para ele. De alguma forma, rumores começaram
a se espalhar que Rivka se comportou de uma maneira inadequada para uma Bat Israel. Em pouco tempo, as calúnias infundadas danificaram a sua reputação e ela não conseguia encontrar um shiduch (uma pessoa para se casar).
Percebendo que a filha não conseguiria mais encontrar um pretendente entre as famílias conhecidas da sociedade, seu pai chegou à conclusão de que não tinham escolha a não ser considerar propostas que até então não haviam considerado.
Sua busca o levou a um jovem apelidado de Aharon der Shmeisser, o assistente do motorista de carroça da cidade. O cocheiro se sentava na carroça e controlava as rédeas. Como assistente, Aharon corria ao lado da carroça e chicoteava os cavalos - daí o apelido de shmeisser (aquele que bate). Este era um trabalho ainda menos nobre do que o de carroceiro.
Rivka, uma garota maravilhosa e perfeitamente virtuosa que se tornou alvo de mexericos e insinuações cruéis e insensíveis, não teve outra opção a não ser se casar com Aharon der Shmeisser.
Sob a hupá (pálio nupcial), Rivka orou: “Mestre do Universo, o Senhor sabe perfeitamente que esses rumores são infundados. O Senhor sabe que eu sou
uma moça refinada. Devido à maledicência das pessoas não posso mais me
casar com um talmid hacham (um estudioso da Torá) como eu desejava”.
Ela então invocou as palavras da berachá (benção) que recitamos após a
leitura da haftará (palavras que na verdade se referem sobre a cidade de
Jerusalém): “Vela'aluvat nefesh toshia” - para aquela que foi profundamente
humilhada traga a salvação rapidamente.
“Apesar do fato de que não posso me casar com um talmid hacham”, ela chorou, “por favor, ouça as minhas preces e me dê filhos que sejam talmidei hachamim”.
Fiel às palavras do Talmud, os Portões da Onaa foram acolheram as suas orações e Aharon e Rivka mereceram trazer quatro filhos ao mundo que não eram apenas talmidei hachamim – mas cada um foi um Gadol b'Israel (um líder do Povo de Israel).
Os autores dos livros Amudei Or e Hoshen Yehoshua, e outros dois grandes Rabanim nasceram de uma união que começou com esta penetrante tefilá, a prece de uma moça angustiada e com sofrimentos.
Em homenagem à dor e ao sofrimento de sua mãe e ao mérito espiritual que ele e seus irmãos receberam como resultado de sua oração, Rav Yehiel Heller assinava cada carta com a denominação He’aluv, o humilhado.
O Talmud continua: “Todas as más consequências por transgredir erros prescritos pela Torá são aplicadas por mensageiros de Hashem, menos as de um único pecado: Onaat Devarim. Quando se trata de pessoas que causam sofrimento aos outros usando palavras, Hashem diz: ‘Eu vou punir você. Eu próprio’”.
UM ATAQUE AO PROTETORADO DE HASHEM
O que há em Onaat Devarim que irrita tanto Hashem a tal ponto que Ele
sempre ouvirá os que foram prejudicados através de palavras e punirá o
perpetrador Ele próprio?
O Maharal de Praga, Rabino Yehuda Loew (República Tcheca, 1525-1609) em seu livro Netivot Olam (Nesit Ahavat Hareia 2) explica que, ao contrário de um ataque físico que afeta o corpo, o insulto verbal é um ataque à nefesh da pessoa, seu espírito, sua alma, e a nefesh é o protetorado de Hashem. Quando se ofende uma alma, está se ofendendo algo extremamente importante para o Todo-Poderoso, algo que está nas ‘Mãos’ de Hashem.
Escreveu o Maharal: “Saibam que as almas podem ser feridas, agredidas e
danificadas. Há uma vasta diferença entre alguém bater numa pessoa ou fazer
algo que magoe seus sentimentos. Ao ferir seus sentimentos, a pessoa está
atingindo o nefesh, a alma de sua vítima. E uma vez que a alma está nas ‘Mãos’
de Hashem, a resposta é muito severa”.
Não há como insultar um animal. Uma vaca não fica insultada se você a
chamar de gorda, pois ela não tem nefesh. Porém, seres humanos têm
sentimentos e estes sentimentos são funcionais por causa da nefesh, da alma, e
esta alma é propriedade do Todo-Poderoso! Ele entende melhor que qualquer um de nós o quanto uma alma pode sofrer, o quanto ela é afetada por insultos.
Qual a parte mais sensível do corpo humano? Os olhos. Se alguém me bate
no estômago, dói. Porém, se alguém bate em meus olhos, isto realmente dói
muito. Um cisco irrita a pupila do olho. Que outra parte do corpo é afetada por
um grão de pó, por uma sujeirinha?
Quando o oftalmologista examina os olhos, automaticamente o paciente se
retrai – “ele vai mexer em meus olhos”.
A alma é assim. Supersensível. E o Todo-Poderoso sabe disso. Ele sabe
como uma pessoa está afetando a outra. Por isso o versículo a respeito de Onaat Devarim termina com as palavras: “Veyareita me'Elokecha, ki ani Hashem Elokechem - e tema o seu D’us, pois Eu sou Hashem, seu D’us”.
Comer carne de porco não vem com a advertência de Veyareta me'Elokecha nem vestir roupas com fibras de lã e linho (shaatnez) ou comer pão em Pessach.
Mas Onaat Devarim sim, porque Hashem prometeu pessoalmente retribuir ao ataque frontal sofrido por qualquer nefesh, que são consideradas muito preciosas por Ele.
Considerando a gravidade do Onaat Devarim, por que é tão comum as pessoas se engajarem em falas ofensivas? Eu sugeriria que existem três tipos de Onaat Devarim: a intencional, a não proposital (não consciente) e a insensível e estúpida.
segue em "Palavras constroem mundos 2"
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